CFCH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Switch to desktop

>> DESTAQUES

Conselho do CFCH aprova título de honoris causa a Kabengele Munanga

Antropólogo congolês naturalizado brasileiro é professor da USP e da UFRB. Processo ainda será apreciado no Consuni

 

O Conselho de Coordenação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), em sua 847ª reunião ordinária, realizada na última segunda-feira (dia 18/02), aprovou a concessão do título de doutor honoris causa ao professor Kabengele Munanga. O requerimento é assinado pelo professor Vantuil Pereira, diretor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) e vice-decano do CFCH. O processo ainda precisa ser aprovado no âmbito do Conselho Universitário. 

Nascido na República Democrática do Congo, em 1942, o professor Kabengele Munanga radicou-se no Brasil em 1975, quando iniciou o Doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (USP), e naturalizou-se brasileiro em 1985. Sua obra ganha relevância pela defesa das cotas e das políticas afirmativas para negras e negros, pelo debate acerca do racismo, políticas e discursos antirracistas, negritude, identidade negra versus identidade nacional, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais. O título de doutor honoris causa justifica-se assim pela “longa história de vida em defesa dos direitos humanos, de uma produção intelectual de combate ao racismo e promoção da equidade étnico-racial”, enfatiza o documento aprovado no Conselho do CFCH.

Munanga é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, mas continua atuante no Centro de Estudos Africanos (CEA) e no Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto de Estudos Avançados daquela universidade. Desde 2017 é professor visitante da Universidade Federal da Universidade do Recôncavo da Bahia (UFRB). Organizou o livro “Superando o racismo na escola”, o primeiro a introduzir a questão racial nos temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ocupou cargos de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (1983-1989), vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (2002-2006) e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (2006-2010). É autor de mais de 150 publicações entre livros, capítulos de livros e artigos científicos.

Entre os prêmios recebidos ao longo de sua trajetória acadêmica estão a Ordem do Mérito Cultural, concedido pelo Ministério da Cultura, em 2008; o Prêmio Benedito Galvão, oferecido Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, em 2012; o Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco, outorgado pelo Ministério das Relações Exteriores, em 2013; entre outros.

Link para a Plataforma Lattes 

Em entrevista concedida ao portal da ONG Geledés – Instituto da Mulher Negra, publicada em 13 de maio de 2017, Munanga fala sobre racismo, democracia racial, política de cotas e ações afirmativas, negritude e temas afins. Confira abaixo alguns trechos:

Democracia racial, ideal ou máscara?

Por muito tempo, o Brasil foi conhecido como o país da democracia racial. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945, a Unesco patrocinou uma pesquisa para averiguar se realmente o Brasil era uma democracia racial. Caso fosse, poderia servir de modelo para o mundo.

A conclusão, depois dos estudos desenvolvidos na Universidade de São Paulo (USP), foi a de que não havia democracia racial nenhuma. Ficou evidente que o que existia era o mito da democracia racial. A pesquisa demonstrou que os negros brasileiros encontravam barreiras no caminho de sua ascensão social. Demonstrou que essas barreiras não tinham nada a ver com a questão econômica. Elas foram erguidas para brecar o desenvolvimento e a ascensão da população negra brasileira.

(...)

O racismo mata quando discrimina, e mata, pela segunda vez, porque prejudica a conscientização tanto das vítimas quando dos discriminadores em torno das relações raciais. Para os americanos, o racismo não é segredo, eles assumem. Por conta disso até conseguiram promover leis contra a segregação racial e implementar políticas de ação afirmativa.

Para os brasileiros, uma das maiores dificuldades é a confissão de que são racistas. Muitos brancos afirmam que não há racismo, mas sim uma questão social. Mas afinal o que é social? Tudo é social.

Negritude

Em contrapartida, o processo de construção da identidade de um descendente de africano tem de passar pela cor da pele. Se o negro brasileiro não assumir a cor de sua pele, estará negando sua própria humanidade. Esta identidade também tem de passar pela cultura e pela história da população negra. Assim, a negritude se torna indispensável para a construção de uma identidade.

Uma pessoa mestiça necessita assumir a sua negritude, porque quando ela sofre discriminação é por conta do sangue negro que carrega, não é por conta do sangue branco que também carrega. Quando há uma competição acirrada entre a pessoa mestiça e a pessoa branca, a mestiça deixa de ser mestiça para ser simplesmente tratada como “negrinha metida” ou “negrinho insolente”. Nestas situações, a brancura do mestiço acaba imediatamente.

A negritude também é um elemento de luta e de combate. É um postura política. Trata-se de uma ideologia de combate ao racismo. Enquanto existir uma única pessoa, homem ou mulher, discriminada por causa da cor da pele, a negritude fará sentido como reafirmação do orgulho e de autodeterminação.  Pessoas negras, em todo o mundo, dizem que é um fardo abrir caminho em sociedades racistas. Também atestam ser a negritude uma espécie de antídoto para as discriminações.

Simplesmente cotas

A Índia foi o primeiro país a implementar a política de cotas. No ano de 1950, três anos depois da independência, o país institucionalizou as cotas para minimizar a dura discriminação contra os chamados intocáveis. Numa sociedade de castas, há os sacerdotes, os guerreiros, os comerciantes, os cultivadores, os servidores, e os que não são classificados, os que não são nada, ou seja, os intocáveis.

(...)

No caso brasileiro, cotas podem significar a redução da desigualdade entre brancos e negros. Elas pretendem ajudar no estreitamento do fosso que separa brancos e negros no tocante à educação e às oportunidades de trabalho.

Cotas brasileiras

Se houvesse mágica e uma fadinha agitasse sua varinha de condão tornando boas as escolas públicas, os negros levariam de 20 a 30 anos para competir, em condições de igualdade, com os brancos. Bom, fadas não existem. O jeito é criar políticas concretas para minimizar estas desigualdades.

Cotas na universidade têm efeitos rápidos. Em quatro anos, aparecem os resultados. Em quatro anos, teremos uma geração de jovens que, sem as cotas, não teriam a possibilidade da formação.

Os que são contra as cotas dizem que as aceitar é reconhecer a existência de raças no Brasil, é racializar a sociedade, é inventar o racismo. Ora, as pessoas que estão lutando pelas cotas lutam para corrigir os efeitos da discriminação racial.

(...)

O brasileiro pode e deve construir sua identidade a partir da diversidade. Nossa identidade é plural. Temos contribuições das culturas indígena, japonesa, árabe, europeia, e, muitíssimo, da africana. O problema é que só uma delas, a europeia, está no poder. A cota não vai trazer conflitos de raça. Ela é uma ação para diminuir desigualdades raciais.

Há sentido falar em raça como construção sociológica, antropológica, como realidade política. Raça é uma categoria de dominação e exclusão. Os movimentos negros usam raça no sentido social e/ou político, pois apesar de a raça não existir biologicamente, a fenotopia e a cor da pele formam as aparências a partir das quais se constroem os preconceitos e, consequentemente, a discriminação. Quem sempre apontou a inferioridade da raça negra foram os brancos. Isto está escrito na memória oral e nos livros.

Um outro elemento que eu gostaria de sublinhar: o efeito multiplicador das cotas. Certamente, os filhos destes jovens que entram na universidade, pelo sistema de cotas, terão uma condição de vida melhor. Com certeza daqui 20 anos, a educação do negro, no Brasil, estará radicalmente superior ao que é hoje.

Ações afirmativas e o valor da educação

Ações afirmativas são políticas de intervenção concreta. Não são tão somente sinônimo de cotas. As cotas são políticas que trazem efeitos a curto prazo. Mas outras ações podem ser aplicadas.

Por exemplo, podemos entrar em uma empresa e observar: quantos negros, mulheres ou pessoas portadoras de deficiência trabalham lá. Podemos estipular: a empresa tem cinco anos para mudar o quadro de exclusão, para incluir. Caso não o faça, o governo não comprará nada desta empresa.

Agora, ações afirmativas são estímulos para a mobilidade social, não resolvem o racismo sozinhas. Há uma outra frente importante que é a educação. Educação não é apenas aprender a ler, a escrever. Não é apenas aprender uma profissão.

Educação é adquirir uma cultura cidadã, é aprender que democracia é conviver com a diversidade, é conviver com a diferença. Uma sólida educação forma cidadãos críticos. Se a pessoa aprendeu o racismo em casa, e está exposta a falas e atitudes não racistas na escola, ela vai ter argumentos e força para contestar o racismo da casa.

As leis são para punir as pessoas que não obedecem, mas elas não combatem os preconceitos introjetados nas cabeças. Preconceitos cristalizados são invisíveis. Para mudar o quadro de discriminação racial são necessários: leis, educação, políticas públicas e políticas de ação afirmativa.

Clique aqui para ler a entrevista na íntegra 

Créditos da foto: Unilab

Compartilhe este conteúdo