No dia 09 de junho de 2025, Benedita da Silva recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, conforme proposto pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida (NEPPDH-SSA).
A cerimônia lotou o Salão Pedro Calmon (Palácio Universitário - campus Praia Vermelha da UFRJ) e contou com a participação de personalidades ilustres da Academia, da política, da sociedade civil, etc.
Fotos: Fabio Caffé (SGCOM/UFRJ)
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Discurso de Benedita da Silva durante sessão solene do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para outorga do título de Doutora Honoris Causa
proposta pelo professor Vantuil Pereira, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH)
9 de junho de 2025 – 14 horas
Salão Pedro Calmon – Palácio Universitário
Campus Praia Vermelha
Agradecimentos:
Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor Roberto Andrade Medronho
Vice-reitora, professora Cássia Curan Tucci
Decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, professor Vantuil Pereira
Vice-decano, professor Paulo César Castro
Diretora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos, professora Ana Cláudia Tavares
Vice-diretora, professora Fernanda Barros
Articulador da homenagem, Dr. Rafael Acioli Diniz de Lima
A todo o corpo docente e administrativo desta universidade
E a amigos, familiares que encontram-se nesta honraria
Minha gente, já falei para o Pitanga que se a gente está recebendo muita homenagem. É sinal de que vamos viver muito para receber e dar ainda mais carinho para vocês. Bem, não é porque eu já fui homenageada antes que eu não estou nervosa, tremendo por dentro de tanta emoção de estar aqui, na Universidade do Brasil, para receber o meu canudo de Doutora Honoris Causa no meio de tanta gente sabida, brilhante, com mais palavras no dicionário e com mais tempo de estudo do que eu.
Se o negócio é me fazer chorar de felicidade e de agradecimento, saibam que já chorei bastante antes para me acalmar e tentar fazer bonito aqui. E não sei se conseguirei segurar o meu choro. Pois dentro do meu coração esse chororô mais parece uma correnteza de memórias que vai lavando a alma e molhando tudo, o rosto, o gesto e até estes papeis onde estão as palavras que escolhi para abraçar vocês.
Gente, quer saber mesmo: com esta homenagem eu estou me sentindo e ficando ainda mais metida.
Eu já nasci metida. Metida a enxerida, diziam uns. Metida a sabida, diziam outros. Metida a querer viver e existir, diziam todos os outros pobres, pretos e periféricos que, como eu, saiam do “planeta fome” denunciado pela voz cortante de Elza Soares. Elza, uma mulher de carne negra que se recusou a ser a carne mais barata do mercado.
Eu fui metida no mundo das lidas e das lutas desde a barriga de minha mãe, indo com ela grávida para o serviço. Minha mãe, uma mulher autodidata, uma obrigação para quem é pobre, foi uma líder religiosa e comunitária que não tinha roupa para a ignorância e para conformismo. E ela logo me fez saber a lição número 1 necessária e realista: que eu vim a um mundo que já tinha seus donos. E que eu havia de me meter, mais cedo ou mais tarde, com estes donos e suas razões discriminatórias de cor, de classe, de gênero, de orientação sexual, de origem social, de inscrição religiosa.
Para ajudar em casa, para poder ter e manter uma casa, o jeito era aprender a ser atirada e sair me metendo “onde não era chamada”. E, assim, tentar abrir no braço, com persistência, alguma brecha para buscar existir até o dia seguinte.
Sobreviver ou sobreviver, eis a nossa questão! Para quem teve que nascer sabendo que ouviria muito mais não do que sim, o jeito era aprender a ter coragem para ser entrona e tentar construir, na dificuldade e com muito obstáculo, algum sim, ainda que provisório. Afinal, o distrato, a humilhação, a exclusão já estavam ali esperando por nós no asfalto. Mais que uma prova escrita, o esculacho, o olhar censor, a violência corretiva já nos condenavam antecipadamente à reprovação.
Sair se metendo na própria vida, tomando-a de volta para nós, era o aprendizado cru e indispensável de nossa grande revolução pela liberdade e igualdade, uma revolução muitas vezes silenciosa como prática de luta, uma revolução muitas vezes silenciada pela repressão.
Antes de ser uma consciência política, ser abusada, metida e entrona era uma necessidade existencial que precisava questionar diante do prato de comida, da falta de luz, de água e de escola, as políticas do mais do mesmo que mudam para ficar igual, desigualando ainda mais os que já estavam desiguais.
A pedagogia que a gente tinha era essa: ir se metendo, favela adentro e asfalto afora, com a cara e a coragem, com o corpo moído, a alma aflita e os sonhos adiados. E, assim, eu aprendi a ir ficando cada vez mais entrona. Aprendi a ir me metendo desde criança. Me metendo para sobreviver. Me metendo para existir. Me metendo para aprender que sobreviver, existir e resistir é o saber construído por vários corpos, pelas diversas mãos e pelas inúmeras cabeças dos periféricos e subalternos que fazem de seu dia a dia uma grande luta.
O saber na minha infância na favela não vinha como um direito. Vinha como uma ordem de cima. A disciplina aprendida era é para aceitar e servir. Ser criança era aprender a ter responsabilidade de adulto, ser treinada para fazer as vontades de quem mandava. De um lado, um mando branco, com lugar de fala e veto. De outro lado, uma obediência preta, vista como “lugar de falha” e vetada para vida digna.
O saber era para aprender a carregar mudança, trouxa de roupa, sacola de compra, tijolos, tábuas para o barraco e o que mais fosse preciso para garantir o sustento. O nosso saber não oferecia descanso, lazer ou o prazer da reflexão. O saber era mais um peso a carregar, porque a gente não podia faltar às aulas da própria vida, da nossa própria condição de sobrevivência.
O peso do conhecimento para a mulherada preta como eu era o peso da lata d’água na cabeça morro acima, era a saca de cimento para subir parede, eram o braço doido e as pernas cansadas de tanto descer e subir favela para trabalhar na casa dos outros e ainda ter energia para seguir dando conta na nossa casa. O peso do conhecimento foi aprender a engolir o “é assim mesmo” sem deixar de lutar contra o destino que nos impunham.
E, assim, eu fui me metendo no serviço para fazer a vida girar, para fazer a minha vida viver, lavando, cozinhando, criando os filhos, levando água, virando laje, carregando o mundo na cabeça como se fosse a minha sina. Mas era sina, era um saber doido de tão lúcido, mas que me ensinava a insistir em ficar viva.
Eu fui seguindo ainda mais metida, porque na favela não se nasce a passeio, se nasce para o serviço. Antes da gente ser sujeito de direito, a gente era sujeito ao direito dos outros, das vontades, manias e cismas da branquitude do asfalto.
Antes de virar gente, a gente virava ajudante. E foi ajudando, ouvindo, servindo, que eu fui aprendendo. Nem sempre com escola, mas com lição diária da lida. Com dificuldade para tirar um diploma, mas com os certificados da faculdade da vida. Sem estante de livros em casa, mas com memória para manter tudo certinho na cabeça.
O mundo nos queria mudas, quietas, dobradas. Mas eu fui ficando mais sabida e mais abusada. Na marra. Na fé. Na força da esperança.
Na favela, saber era precisar. Precisar de solução, de comida, de abrigo, de rumo. A gente aprendia a se virar. A resolver. A não levar problema para casa. A gente aprendia a carregar, junto com o fardo, a dignidade de primeiro afirmar para o mundo que a gente era gente, para depois brigar um pouco mais para ser reconhecida como cidadã.
Preconceito? Nem dava tempo de nomear, porque logo vinha um outro para machucar um pouco mais a ferida já aberta. O racismo não tira folga, discrimina a cada passo nosso pela vida, de segunda a segunda. Tínhamos é que sair tirando de letra e metendo bronca porque tínhamos decidido existir como pretos e favelados.
Violência? Era só mais uma chibata diária que a gente tinha que se desviar ou disfarçar, aprendendo a saber servir para depois poder saber existir com muita luta. A gente teve que conhecer, de cor e salteado, a tabuada da sujeição. E a gente manobrava com o nosso letramento popular para romper com a invisibilidade, a indiferença e o esquecimento.
Não havia tempo para sonhar com uma cidadania abstrata porque não sobrava tempo nem para o luto. A dor da perda não podia parar o corre de quem restou vivo lá em casa, porque o bujão de gás tinha acabado, o gato de luz foi derrubado, a roupa precisava ser passada para pagar as despesas e os estômagos pediam comida. Por essa urgência da vida digna, fui entrando em tudo que era canto sim: na igreja, na rua, na associação, no palanque. Precisava estar junta e misturada para seguir em frente.
Fui, então, me metendo na política. Política do saber escutar, do saber cuidar, do saber dar atenção. Política de tantos saberes vindos do mutirão comunitário que nos ensinou o que é a coletividade e sua força transformadora. Política de quem sabe e não se esquece do valor do vizinho, da comadre, do parente. Política de quem só vira o dia porque sabe que alguém ajudou a empurrar.
Ser metida na favela era levar pito e aprender com ele. Era escutar quando o silêncio mandava calar. Era falar quando o “sim senhor” tentava emudecer. Era cantar nos cultos, cuidar com palavras, fazer política da escuta. Fui sim me metendo com os braços incansáveis para o serviço e com a boca para a palavra. Palavra dita, palavra cantada, palavra acolhedora. Palavras de muitas Beneditas que hoje podem estar aqui nesta universidade como testemunhos da equidade promovida pela política de cotas.
A cada passo nessa minha “metideza” persistente eu fui levando a favela comigo. A gente não tem como sair para brigar pela nossa cidadania e deixar a favela dentro do barraco, a mulher escondida atrás da porta e a pretitude trancada no armário.
Nas ideias, nos gestos, na coragem lá ia eu, a preta, a favelada, a mulher. Fui levando a minha gente no corpo. Fui levando na alma a sabedoria das mulheres e das pretas que nunca podiam errar. Porque errar, para nós, era cair do abismo. A pobreza negra não permite o erro. Quem vem de baixo sabe disso. Sabe que não se pode perder a única oportunidade cavada. E, por isso, a gente aprendeu a carregar o peso deste conhecimento dolorido que revela a mobilidade social negativa, que faz a gente andar uma casa para frente e cinco para trás, e que cerceia a liberdade da escolha e da experimentação de alternativas de melhoria de vida.
Tive que aprender que favelada, preta e mulher tinha que nascer pronta. A gente precisava, obrigada pelas dificuldades, a nascer sabendo. A pedagogia do pobre e preto só admite o acerto, o fazer o certo e o direito para não sobrar, andar para trás, ficar a meio do caminho ou terminar morto num beco da comunidade.
Com esta sabedoria toda aprendida nas ladeiras do Chapéu Mangueira, eu tinha clareza de que nas batalhas da vida antes de tudo, vinha a “preta”; depois, a “favelada” e, por fim, a “menina-mulher”. Tudo isso antes de ser “alguém”, antes de ser cidadã.
Foi no dia a dia na favela que eu...
Primeiro descobri o que era ser preta, para depois me tornar militante.
Primeiro virei doméstica, mãe e dona de casa, para depois me tornar uma trabalhadora.
Primeiro tive que me descobrir mulher, para depois poder ser uma feminista.
Primeiro precisei me reconhecer como favelada, para depois ir me tornando Benedita “preta, favelada e mulher”.
Fiquei metida sim e agora com este título estou mais metida ainda. Porque se meter era preciso, porque sobreviver não era preciso para a nossa gente. Segui metida sim, no trabalho dos outros, na vida dos outros, no mundo dos outros primeiro para servir como trabalhadora doméstica. E depois? Também para servir. Mas às nossas causas. À nossa luta.
Foi assim que eu me meti nos movimentos de favelas, de mulheres e de negros. Lutar por saneamento era primeiro lutar por um banho, por comida, por higiene e dignidade do corpo que serve. Lutar por urbanização era primeiro lutar por condução, por luz, por rua, por teto para um corpo que trabalha. Política era a bica d’água, o mutirão, a laje virada e colocar a mulher nas associações de favela.
Gente, minha paixão sempre seguiu viva por saber das coisas para agir com compaixão com os outros e respeito aos seus saberes. Meu encantamento de aprendiz era para este saber que escuta, que observa, que guarda no corpo e na memória o que nem sempre está nos livros e nos registros. O saber que costura a esperança com a resistência.
Fui fazer faculdade para aprender e poder usar por dentro o código dos dominantes. Para entender o idioma do poder. Eu já era uma poliglota da sobrevivência: falava o português do patrão, o léxico do racista, a linguagem da luta comunitária. Mas precisava me alfabetizar na língua da academia, das intelectuais, das mulheres brancas preparadas. Era importante reconhecer suas qualidades e poder também usá-las a serviço da mulherada preta e favelada.
Benedita se fez metida assim. Fez da dor, matéria-prima. Fez da escuta, caminho. Fez da esperança, horizonte. Metida a aprender, a ensinar, a resistir. Sabendo das coisas porque vivia tendo que dar um jeito com elas. Como quem luta com o corpo e a alma, mas não esquece de agir com o coração. Com dureza e ternura. Com garra e doçura. Com tristeza às vezes. Mas com esperança alegre e com o sorriso no presente olhando para o melhor do futuro.
Por isso, minha gente, o título de Doutora Honoris Causa concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade do Brasil, a Universidade que nasceu de todos, é um título conferido a todos nós.
Este título é da doméstica que cuida como especialista em assistência social. É da manicure que escuta mais que muito analista. É do motoboy que conhece a cidade tanto quanto o urbanista. É da avó que cura com folha. É da mãe que ensina com gesto. É da religiosa que ensina pela fé. É dos pretos e pretas, das vítimas de balas achadas, das juventudes periféricas, da população LGBTQIA+.
Este título é dos empreendedores de seu próprio destino, que tiram de si mesmos as suas chances de melhoria. E dos que ainda vivem sem CPF e dos que moram onde o CEP ainda nega a sua dignidade.
Este título carrega muitos nomes e diplomam comigo todos os Silvas. Este título carrega os muitos silêncios de quem não pôde se sentar nos bancos da universidade porque foram impedidos pelos cercos da intolerância, da desigualdade e da exclusão.
Este título é obra dos trabalhadores porque, antes de virar tese, este saber que aqui represento já tinha virado pão, já tinha virado fé, já tinha virado empurrão para não desistir de esperançar.
Este título é das muitas Benés e dos muitos Benés vindos lá de baixo e que constroem o mundo com muita garra, com bastante empatia e com sobra de generosidade.
Os saberes homenageados neste título são os das nossas vivências, das dores que não viraram ódio e ressentimento, do amor pela vida digna que vira coragem para luta por dignidade, inclusão e reconhecimento.
Esse título que agora recebo em nome de todos nós é mais que uma honra, é um recomeço de nossas vidas. Ele é o retrato de todos os passos que me trouxeram até aqui. É da menina que escutava o mundo antes de saber nomeá-lo, dos mestres da vida que me ensinaram a ver com os olhos do povo, dos encontros com a diversidade que só a universidade pública é capaz de costurar. Porque é nela – nesta casa de janelas largas para o horizonte e portas abertas para o futuro – que os filhos dos Brasis múltiplos encontram chão, voz e oportunidades. A universidade pública é a contramão do silêncio imposto, é o território onde o saber deixa de ser privilégio dos bem-nascidos e se faz conhecimento com retribuição e devolução generosa ao mundo.
Aqui, o título de doutora honoris causa é o reconhecimento dos talentos forjados na travessia dos corpos que resistem pensando, das vidas que sonham “escrevivendo suas estórias”. É a celebração da política da inclusão, da diversidade, do saber que liberta, não aceita censura e não se ajoelha diante do autoritarismo.
Honro, com esse título, cada rosto que me atravessou, cada voz que me ensinou, cada luta que me moveu. Ele pertence aos que ousaram amar o conhecimento e aos que não desistiram de existir com dignidade.
E agora, mais do que todas estas as palavras ditas é hora de estender os braços para refazer os muitos abraços que me trouxeram até aqui. Já passou da hora de eu não me conter de tanta emoção porque a gente agradece de verdade de corpo inteiro atravessado pela gratidão. Entrou aqui uma Benedita chorosa de emoção, e sai daqui uma Benedita Doutora chorona de felicidade. Muito Obrigada.
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