As férteis promessas do Future-se de atrair volumosos recursos da indústria para a universidade pública e converter os estudantes em empreendedores de sucesso se chocam com a realidade.
O programa do Ministério da Educação (MEC), lançado em 17 de julho, desconsidera que o setor produtivo não investe em pesquisa e que a economia brasileira, dependente de commodities, tem sido incapaz de gerar empregos qualificados e de produzir bens e serviços com alto conteúdo tecnológico.
A análise de Roberto Leher, ex-reitor da UFRJ e professor titular da Faculdade de Educação (FE), foi feita em debate sobre o Future-se, na Semana de Integração da Pedagogia, em 21/8, no auditório Manoel Maurício, na Praia Vermelha.
A princípio, segundo ele, a ideia de incrementar a cooperação entre as instituições federais de ensino superior (Ifes) e as empresas tem certo apelo sob a ótica do senso comum. Afinal, a colaboração pode ser frutífera em determinadas áreas, como aconteceu com a parceria entre a Petrobras e a UFRJ para desenvolver a tecnologia de exploração do pré-sal.
Contudo, Leher ressaltou que o debate não é sobre se a universidade deve ou não manter uma interação com o setor produtivo, mas se o capital privado pode, de fato, financiá-la.
Nos EUA, apenas 1% do dinheiro privado chega à universidade
Pesquisador de políticas públicas em educação, ele disse que a indústria, na verdade, não financia o grosso da pesquisa universitária em nenhum país do mundo, nem mesmo nos Estados Unidos, onde há forte interação da universidade com as empresas.
De acordo com o professor, um estudo da Fundação Nacional da Ciência (NSF, na sigla em inglês) dos Estados Unidos mostrou que, em 2017, do total do dinheiro aplicado pelas empresas em pesquisa e desenvolvimento (P&D) apenas 1% chegou às universidades. Ou seja, 99% desses recursos ficaram nos próprios departamentos de pesquisa do setor privado.
No caso brasileiro, segundo Leher, a última edição da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec) do IBGE, de 2014, mostra que apenas 7% das empresas consideradas inovadoras interagem com a universidade. “Desse percentual, cerca de 70% declararam que essa relação não era estratégica do ponto de vista empresarial”, contou.
Além disso, para o pesquisador, a alternativa de a indústria financiar a universidade brasileira é irreal também por razões macroeconômicas. Lembrou, por exemplo, que o Brasil convive com o número de 55 milhões de pessoas desempregadas, subempregadas ou sem proteção social e uma economia estagnada.
O que existe no Brasil, disse ele, é um esvaziamento da indústria e a expansão da produção de commodities para a exportação, como o minério de ferro, a soja e a carne. “Uma economia pouco complexa e desindustrializada gera trabalho precário e de baixa qualificação”, afirmou.
Emenda 95 impôs camisa de força ao Estado
Em uma economia deteriorada e rudimentar, qual o lugar da pesquisa? Para Leher, o país vive um processo acelerado de eliminação da estrutura e das políticas de ciência e tecnologia do âmbito do Estado.
No entanto, segundo ele, a crise financeira do Estado deve ser atribuída, principalmente, à Emenda Constitucional (EC) 95/16, que congelou os gastos públicos por 20 anos e foi aprovada pelo governo Temer. “Ela é a chave para a leitura do Future-se”, afiançou.
A medida, segundo ele, estabelece uma divisão entre duas grandes contas do Estado brasileiro. Uma delas, intocável, diz respeito aos gastos financeiros, relativos ao pagamento de juros e serviço da dívida. “É uma conta sem controle e limite”, sentenciou.
A outra conta, disse, tem limite e se relaciona aos gastos primários, ou seja, todas as despesas não financeiras, como, por exemplo, pagamento de pessoal, benefícios previdenciários, investimentos públicos em infraestrutura e em áreas como educação, ciência, cultura e saúde.
“As despesas primárias no Brasil correspondem a apenas 20% do PIB. Com a emenda 95, a perspectiva é que esse teto caia entre 0,5% e 0,8% por ano, de acordo com um estudo da assessoria da Câmara dos Deputados”, alertou.
Segundo o professor, a EC 95 impôs uma camisa de força ao Estado brasileiro, que não existe em nenhum outro país do mundo. Diante desse quadro, para Leher, é possível concluir que a medida está forçando uma reforma não consentida do Estado. “A reforma da Previdência é uma prova disso”, enfatizou.
O Future-se, disse ele, também é uma dimensão da reforma do Estado. Sem debate prévio, o programa foi apresentado pelo governo como alternativa à crise orçamentária das universidades.
“Recursos de pesquisa não pagam a conta de energia”
As universidades brasileiras, segundo o ex-reitor, recebem para o seu orçamento de pesquisa e desenvolvimento o correspondente a 1,5% em média dos seus gastos gerais. Na UFRJ, um valor em torno de R$ 4 milhões anuais.
Segundo ele, ainda que no Brasil muitas empresas quisessem contratar universidades públicas para fazer pesquisa – “o que está longe de ser verdade” – e a UFRJ recebesse a mais o mesmo valor orçamentário de R$ 4 milhões, esses recursos não cobririam nem a conta de energia, de cerca de R$ 70 milhões.
Segundo Leher, a grande contribuição que a universidade pública oferece às empresas é a formação de pessoal qualificado para operar os seus departamentos de P&D. “No entanto, qual é o nosso drama? A indústria não contrata porque não há ambiente para pesquisa inovadora. O país, na verdade, está exportando matéria-prima”, reforçou.
A pesquisa Pintec também mostra que dos 90 mil mestres e doutores formados no Brasil nas ciências duras entre 2008 e 2010, apenas 80 profissionais foram contratados pela iniciativa privada. “Não chegou nem mesmo a 1%. Mestres e doutores no Brasil trabalham no âmbito público simplesmente porque a indústria não os contrata em proporção significativa”, acentuou.
Sem patrimônio e sem autonomia
De onde viria então o dinheiro do Future-se, que quer “proporcionar às instituições federais de ensino superior acesso a cerca de R$ 100 bilhões”, conforme notícia publicada no Portal do MEC? Essa cifra, segundo Leher, viria do patrimônio da universidade pública.
A ideia do Future-se é fazer um levantamento de todos os terrenos das universidades que aderirem ao programa, por meio do Serviço de Patrimônio da União (SPU), e colocá-los à disposição do MEC. “Esse patrimônio iria para um fundo de investimento para ser negociado na Bolsa de Valores, sob controle das chamadas Organizações Sociais [OS]”, disse.
Segundo ele, as Organizações Sociais são entidades privadas com as quais as instituições federais de ensino superior teriam que fazer um contrato de transferência de gestão. “A rigor, o programa é uma iniciativa em que o patrimônio da universidade passa ao controle do MEC, com os circuitos decisórios circunscritos à Organização Social e aos investidores”, condenou.
Com a terceirização da gestão, afirmou Leher, a autonomia universitária para definir as ações prioritárias no ensino, na extensão e na pesquisa desaparece. O poder decisório ficará nas mãos dos investidores que participam do fundo privado.
“Ora, a universidade não teria mais, então, os seus conselhos acadêmicos e de gestão para definir as suas prioridades? Insisto que isso não existe em nenhum lugar do mundo”, reiterou.
A universidade perderia ainda, com o Future-se, a autonomia de gestão financeira, o que contraria os princípios da Constituição Federal. Por isso, para Leher, “o programa é flagrantemente inconstitucional”.
“A educação pública é um elemento civilizatório”
Além disso, ele diz que o Future-se está repleto de submarinos, ou seja, “propostas contrabandeadas” sem nenhuma relação direta com o teor do programa. Um dos mais graves é o fim da dedicação exclusiva (DE) do professor. “Sabemos que não há pesquisa sem esse regime de contratação”, alertou.
Leher disse ainda que vivenciamos um momento no Brasil e no mundo em que parecemos imersos em uma profunda neblina. Segundo ele, a realidade está se mostrando bastante dura, mas é possível agir para transformar o tempo histórico e buscar alternativas. “Mais do que nunca, o fazer universitário da educação pública é um elemento civilizatório nessa mudança. E isso deve nos encher de esperança e coragem”, completou.
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