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Artigo: As Ciências Humanas e a pandemia

Desde o dia 16 de março de 2020, vivemos a crise causada pela pandemia de COVID-19. Trata-se de uma situação estranha, porque inédita, para a maioria da população mundial. E junto com o estranhamento vem o medo. 

O medo é desajuste. O medo é sinal de alerta. O medo é o desconcerto das máscaras com que fingimos um bem-estar que, muitas vezes, de fato não experimentamos. O medo é o sujeito de movimentos e paralisias inimagináveis. 

O medo é também a inflexível presença do que precisa viver. No caso atual, um vírus. Nossa principal ação neste momento consiste em seguir o que aconselham aqueles que conhecem microrganismos, que sabem como se comportam, que entendem como afetam os seres humanos. 

Precisamos dar tempo a eles, que lutam na frente de batalha, expondo suas vidas, para que nos ajudem a combater o vírus, a neutralizar sua ação infectante, a controlar seu poder de contaminação. 

Precisamos dar tempo a eles para que façam o seu ofício de sempre: promover a saúde e preservar a vida humana. E esse tempo de que necessitam chegará com a nossa obediência às orientações desses profissionais. E esse tempo chegará mais rapidamente se colaborarmos para que o sistema de saúde se mantenha funcionando dentro dos melhores limites da sua capacidade de recepcionar e curar pacientes. E esse tempo depende de seguirmos o que diz a ciência, com base em conhecimentos acumulados e validados cientificamente. Depende de não cedermos à impaciência, à frustração, ao desânimo, para que não sejamos atraídos nem pelo pensamento mágico nem pelo negacionismo nem pela precipitação de decisões. 

Viver esse tempo vai nos ajudar a pensar melhor em temas que as Ciências Humanas têm investigado e debatido desde sempre; temas fundamentais para qualquer que seja o cenário dos desdobramentos da pandemia. E que podem e devem ser pensados desde agora. Temas que podem vir como perguntas: 

•Por que existe tanta fome, desabrigo, miséria, desemprego no mundo? 

•Por que tantas pessoas morrem em decorrência de falta de saneamento básico e de acesso a cuidados com a saúde? 

•Por que as sociedades se desenvolvem com uma tendência à formação de megalópoles, com grandes aglomerações e ocupação ostensiva, vertical e, para a maioria, precária do espaço urbano? 

•Por que os modelos econômicos adotados geram tanto desequilíbrio social, com quantidades crescentes de pessoas sem acesso aos bens sociais mais primários? 

•Por que a afirmação dos direitos humanos, pactuados depois de duas trágicas guerras mundiais, avança tão lentamente, com sucessivos retrocessos? 

•Por que a universalização crescente da oferta de educação não se faz acompanhar de melhor desenvolvimento humano? 

•Por que a história da construção da república no Brasil alterna tão sistematicamente ciclos de democracia e ciclos de autoritarismo, sempre atravessada pelo populismo e a autocracia?

São perguntas para manter o debate. Para enfrentar o medo. Para contribuir para o combate aos desdobramentos da pandemia. Dessas e de outras perguntas fazemos nossas frentes de atuação social. Com nossa opção por atuar nas Ciências Humanas, estamos necessariamente diante de muitos desafios:

•compreender como podem ser reconstruídas, de forma saudável, as relações sociais e, em especial, as de trabalho;

•repensar a curadoria da informação e as disputas de narrativas nas sociedades;

•reposicionar as práticas de educação no cenário de ensino-aprendizagem com o uso de tecnologias de EaD, sem, todavia, aderir a discursos triunfalistas e simplificadores que tentam desqualificar a educação presencial;

•abrir perspectivas para a promoção do desenvolvimento psíquico e da saúde mental;

•reafirmar a necessidade do exercício do pensamento crítico-reflexivo;

•reforçar o lugar da história como prática de memória, registro e interpretação.

Trabalho não falta para os profissionais e estudantes das Ciências Humanas. A melhor resposta que podemos dar ao nosso estranhamento e ao nosso medo certamente virá de investirmos ainda mais no estudo, na pesquisa, no ensino, na extensão, sempre voltados para a vida humana em suas muitas dimensões.

Talvez, por vias tortas, a história esteja nos oferecendo uma generosa oportunidade para repensarmos o tripé liberdade, igualdade, fraternidade ─ agora não mais como um ideal revolucionário que se gastou com o exercício de séculos de relações mundanas, mas como uma opção pela sobrevivência da espécie humana em moldes sustentáveis.

Com o tempo, o silêncio e a acolhida acenderão algum tipo de luz na casa do medo, entoarão também algum tipo de voz ao seu ouvido, oferecerão algum tipo de abraço ao seu corpo em desequilíbrio. Aí, talvez, o medo se acostume a viver em sua dimensão de necessidade e desejo, sem atravessar o tempo todo a nossa vida. O medo deixará, então, de existir como ameaça, para ser apenas companhia essencial de quem tenta estar vivo.

A partir do nosso medo e do nosso estranhamento, podemos reinventar modos de viver e de existir, podemos celebrar a vida em todos os seus momentos, podemos manter vivo o nosso propósito de contribuir para o avanço do processo civilizatório e, principalmente, podemos e devemos reafirmar nossa opção pela vida.

* Marcelo Macedo Corrêa e Castro é decano do CFCH/UFRJ

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