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“Não chegamos a criar uma cultura de autonomia”

Para debater essas questões, o Setor de Comunicação do CFCH entrevistou Roberto Leher, professor titular da Faculdade de Educação e representante titular do CFCH no Conselho Universitário. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Leher desenvolve pesquisa em políticas públicas em Educação, com ênfase em educação superior e organismos internacionais, e na área do trabalho, educação e movimentos sociais. “Autonomia universitária tem sua raiz moderna na criação da Universidade de Berlim, por Humboldt, em 1809, em que ele conceitua a autonomia como condição preexistente à universidade. Para ele, a universidade deveria gozar de uma proteção especial, jurídica, de modo que ela pudesse ser instituída pelo Estado, ou seja, um ente público, mas de forma que nem governo nem confissões religiosas, nem interesses econômicos imediatos pudessem se imiscuir na vida universitária”, explica. “A partir dessa concepção de Humboldt, nós vamos ter a definição de que a universidade deve ser um espaço de liberdade ilimitada, ou seja, de modo que todos possam fazer o uso crítico da razão”, completa. 

Leher frisa que a Constituição Federal de 1988 garante autonomia, não apenas didático-científica, como administrativa e de gestão financeira, às universidades brasileiras. “A Constituição estabelece que a Universidade é uma instituição que goza de autonomia. Ela não diz que as universidades ‘devem ter’ ou que ‘seria bom que tivessem’. Ela é categórica quando diz que ‘as universidades gozam de autonomia’”, enfatiza. “A própria Constituição estabelece que, sendo autônoma, a universidade teria condições de estabelecer a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, emenda.

 

O docente esclarece ainda que, na prática, a autonomia deveria pressupor duas prerrogativas: o autogoverno e a autonormação, ou seja, a capacidade de elaborar e executar as próprias leis, normas e regimentos. “Há uma incompreensão frequente por parte dos governos que não têm interesse em que as universidades sejam autônomas, de que conceder autonomia significaria conceder soberania às universidades. Mas isso é uma interpretação tosca da Constituição Federal. O que está claro é que a Constituição assegurou condições para que as universidades pudessem criar suas próprias leis dentro dos preceitos constitucionais, ou seja, a universidade pública não pode cobrar mensalidades porque isso está garantido na Constituição. Mas nenhuma legislação infraconstitucional pode colidir com as leis internas da universidade”, afirma.

Geraldo Nunes

Sobre o caso da demissão do professor Geraldo Nunes, na opinião de Leher, trata-se de “um absurdo jurídico” o fato de o reitor Carlos Levi ter assinado a decisão sem a aprovação do Conselho Universitário. Após denúncias de supostas irregularidades, divulgadas na imprensa, contra o professor e ex-coordenador do Setor de Convênios e Relações Internacionais (Scri), Geraldo Nunes, a Controladoria-Geral da União (CGU) recomendou a exoneração do funcionário, apesar de o caso não ter sido motivo de processo administrativo interno na UFRJ e não obstante a deliberação do Conselho Universitário (Consuni), de 11 de abril, para que fosse encaminhado recurso à Presidência da República contra a demissão. O Consuni chegou a aprovar ainda a criação de uma comissão de averiguação, que poderia gerar uma comissão de inquérito, para analisar possíveis penalidades. 

Apesar de todos os esforços dos conselheiros, o reitor, atendendo às demandas da CGU, assinou a exoneração, publicada no Diário Oficial da União de 18 de abril. “O que aconteceu com o professor Geraldo Nunes não poderia ter acontecido. A demissão de um funcionário da universidade deve resultar de um ato jurídico completo, transitado e julgado, e no caso da universidade, deveria envolver uma comissão de inquérito que apuraria a responsabilidade e a competência privativa do Conselho Universitário, ou seja, só ele poderia demitir um servidor”, analisa. Para Leher, o caso é o resultado do desconhecimento, por parte dos poderes do governo federal, do conceito de autonomia universitária. “A compreensão da CGU e da AGU (Advocacia-Geral da União) é de que a Universidade é uma repartição pública como qualquer outra, ignorando a proteção que a Constituição garante a ela”, explica. 

Leher, no entanto, vê um aspecto positivo em meio à crise instalada: a possibilidade de afirmação da autonomia universitária. “No parecer da CGU, há uma ameaça. O procurador diz que se o Consuni seguir essa linha os seus membros serão punidos na forma da lei. Então ele coloca uma espada na cabeça dos conselheiros. Ele explicitamente escreve isso. Então nós vamos ter que nos manifestar quanto a isso. Vai ser um teste no que diz respeito à autonomia universitária”, afirma. 

Ebserh

Sobre a contratação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, Leher analisa que “trata-se de uma cessão de patrimônio e de pessoal”. De acordo com o professor, a deliberação aprovada no Conselho Universitário tampouco foi seguida pelo reitor Carlos Levi. Representante do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) no Conselho Universitário (Consuni), Leher conta que os conselheiros aprovaram a criação de uma comissão, que acompanharia o processo de elaboração do diagnóstico, dos modelos e das alternativas de resolução. A denominada “comissão de acompanhamento” seria então composta por dois representantes de cada uma das três comissões permanentes do Consuni. Em vez disso, foi criada uma comissão técnica, cujos representantes foram escolhidos pelas comissões permanentes, ignorando a decisão do Consuni da criação da comissão de acompanhamento. Finalmente, reconhecendo o equívoco, o reitor voltou atrás e instituiu, através da portaria 6.994, de 18 de junho, a “comissão de acompanhamento”.

Leher analisa a adesão da UFRJ à Ebserh como uma ameaça ao princípio de autonomia universitária. “Seria uma empresa, que tem como finalidade atividades econômicas, instituída pelo Estado, mas regida pelo direito privado, que poderia ter, inclusive, sociedades anônimas”, explica. Entre as questões levantadas, o docente aponta a nomeação de diretores através de critérios políticos, a demissão de funcionários de carreira, que teriam seus vínculos trabalhistas no modelo do Regime Jurídico Único (RJU) transformados em CLT, a cessão do patrimônio da universidade à empresa, entre outras questões. “A empresa escolhe os servidores que quer receber. Os que ela não quiser ficam de fora. Ela também estabelece os critérios, metas de trabalho e de produtividade desses trabalhadores. O patrimônio da universidade está sob cessão, ou seja, nós cedemos o patrimônio, prédios, equipamentos etc., ficam cedidos a essa empresa que, supostamente, daria em contrapartida um bom modelo de gestão, mais eficiente e, na interpretação dos defensores da empresa, isso não alteraria a autonomia didático-cientifica da universidade. Ela pode continuar usando esse espaço universitário, quer dizer, para atividades de ensino, pesquisa e extensão”, analisa.

O representante do CFCH no Consuni questiona se é possível haver autonomia didático-cientifica sem autonomia administrativa e de gestão financeira. Na opinião de Leher, a resposta é negativa. “Nós sabemos que, hoje no mundo, 90% dos recursos utilizados em pesquisas na área da Saúde estão direcionados para 10% das doenças. O que significa isso? Os grandes laboratórios e empresas direcionam suas investigações, pesquisas, para aquelas doenças que têm um público consumidor rentável. E para isso o setor público e as universidades são indispensáveis”, argumenta. “Os hospitais universitários não seguem uma racionalidade estritamente empresarial. É uma outra forma de organizar a racionalidade da instituição. Supor que a existência de uma empresa subordinada a um jogo político não republicano, que caracteriza o país, vai assegurar condições para  ensino, pesquisa e extensão dentro de uma racionalidade, dentro de um ethos acadêmico, é uma ilusão. E eu diria que não é apenas uma ilusão, mas também uma irresponsabilidade”, completa. 

Leher aponta falhas no processo de debate sobre a Ebserh na UFRJ. Para ele, “não havia uma disposição para o debate” por parte da Reitoria. Ele lembra que a pressão da comunidade universitária no Consuni foi fundamental para a abertura do diálogo com o conjunto da instituição. Além disso, ele analisa como “uma mobilização quase partidária” em relação ao tema. “Foi quase como ‘o governo é nosso e temos que dar crédito a ele, quem desconfia é contra’. É um absurdo, a universidade não pode obedecer a essa lógica”, observa. Outro aspecto apontado por Leher foi a falta de informações precisas e confiáveis em relação à situação dos hospitais universitários na UFRJ. “O Consuni aprovou a elaboração de um diagnóstico de nossos hospitais. Esse diagnóstico não foi feito. Só recentemente recebemos um documento, mas que também não é um diagnóstico elaborado, organizado. Uma questão dramática apontada nele é a questão de pessoal. Então tivemos que fazer uma discussão em meio à falta de informações que poderiam ter fundamentado melhor o debate”, afirma. 

“Cultura de autonomia”

Na opinião de Leher, falta à UFRJ, de fato, conquistar sua autonomia. “Nunca a UFRJ conseguiu implementar efetivamente isso. Ao contrario, a universidade sempre foi cedendo prerrogativas, em vez de ir ganhando. É a folha de pagamento que está em Brasília, e não nas universidades. As diretrizes curriculares das diversas carreiras são elaboradas à revelia das universidades. O sistema de avaliação, de ingresso e de saída é feito fora da universidade. Não tem mais participação nem em como escolher seus estudantes. Quem escolhe os estudantes é o Enem, o que vem causando deformações enormes dentro das universidades. Quando os estudantes concluem os cursos, quem afere a suposta qualidade é o  Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes). Então, a universidade foi paulatinamente perdendo prerrogativas. Não chegamos exatamente a criar uma cultura de autonomia”, diagnostica. “Hoje, quando os órgãos de controle e o próprio Ministério falam sobre autonomia universitária, estão falando da heteronomia, não da autonomia. A voz da autonomia tem que ser da instituição. Ou a universidade se afirma como autônoma ou ela não vai ter a sua autonomia reconhecida nunca. E quando isso acontece ela vai perdendo força na sociedade no que diz respeito ao conceito de autonomia”, enfatiza. 

Leher volta à Universidade de Humboldt, em Berlim, 1809, para retomar a questão conceitual sobre autonomia. Em meio à Revolução Industrial, era preciso proteger o pensamento científico dos interesses do capital. “Seria uma visão romântica imaginar que a universidade fosse ser uma redoma, livre dos braços capitalistas. Mas as universidades historicamente foram buscando o que podemos chamar de ‘um bom corporativismo’. A universidade deve se pensar como uma instituição que precisa zelar por passadas próprias na elaboração dos currículos, na organização dos trabalhos dos técnicos, na organização dos estudantes etc. A universidade tem que desenvolver as suas leis próprias”, analisa. 

Sobre o atual momento da UFRJ, Leher vê problemas a serem enfrentados. “A estrutura da UFRJ foi se degradando em matéria de pessoal, principalmente na parte financeira, justamente porque a universidade se acostumou com a União definindo cada migalha que fôssemos gastar. Temos especificidades. Seguramente, os governos não têm nenhum interesse em permitir que a universidade caminhe de forma autônoma. Sempre tem uma mentalidade de que ela seja uma repartição pública, que seja funcional a atender os interesses do governo. Então a universidade tem que praticar a sua autonomia, que lhe é garantida constitucionalmente”, finaliza.

Por fim, o docente aponta algumas prioridades para que a universidade possa trilhar o caminho da autonomia. “Hoje, o que me parece fundamental seria definir regras gerais sobre financiamento para a universidade, e isso já vem sendo discutido há muito tempo pela Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior). Temos que definir regras gerais que sejam estabelecidas em lei, com orçamento vinculado, como é o caso da USP, entre outras. Eles recebem o montante total de recursos e a universidade, nos seus colegiados, define o que é prioridade e designa os recursos. Nós temos de caminhar para um modelo semelhante”, indica. 

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