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100 anos da UFRJ, 100 anos de educação, ciência e promoção da cidadania: mesmo sob ataque, olhai por nós

Especial CFCH - UFRJ 100 anos¹

Por Richarlls Martins*

Apresentam-se muitas versões possíveis de análise do fato histórico. É consenso afirmar que as celebrações instituem o texto dos vencedores, daqueles que possuem a autoridade dos cânones acadêmicos para registrar os feitos gloriosos. O primeiro século da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é uma oportunidade para reafirmar a “história que a história não conta” e para reconhecer com visibilidade a narrativa dos ‘vencidos’”.

A criação da UFRJ pelo Decreto nº 14.343, em 7 de setembro de 1920, pelo então presidente Epitácio Pessoa, se dá numa conjuntura econômico-social de forte instabilidade, com aproximações possíveis à realidade brasileira deste setembro de 2020. A instalação da crise sanitária internacional de saúde pública provocada pela Gripe Espanhola e os efeitos devastadores da I Grande Guerra Mundial afetam fortemente a geopolítica global e em âmbito nacional geram mudanças significativas no Brasil dos anos que antecedem a criação da Universidade.

A pandemia em curso auxiliou na difusão de maior conhecimento sobre a história das ciências da saúde, especialmente das doenças, e um livro ganhou protagonismo nos últimos meses. O prólogo  de Ruy Castro em O Carnaval da Guerra e da Gripe reconstrói esse período que antecede a criação da UFRJ, a partir da enunciação do carnaval de 1919, primeiro grande evento de proporções públicas após o flagelo de letalidade provocado pela Gripe Espanhola e o horror em escala ampliada transnacional advindo da guerra.Esse carnaval de 1919, que pode ser lido como um agenciamento coletivo, introduz o samba como patrimônio cultural nacional, até então secundarizado ao maxixe, impulsiona o processo econômico nacional, fortemente abalado com a queda de nossa monocultura de exportação com base no café, e também reorienta atravessamentos constitutivos da produção subjetiva vigente, auxiliando na indução de novos modos de ser e estar da população carioca.

A UFRJ foi criada há 100 anos em um palco nacional de profundas transformações sociais e rupturas. A década de 1920 sintetiza, com forte visibilidade, inúmeras agendas que seguem abertas hoje, um século depois, e que na atualidade podem ser traduzidas como trabalho decente e não precarizado, cultura como direito humano, direito à cidade, entre outras.

As greves e a organização do movimento operário nacional, o fortalecimento do movimento sindical em constituição com o desenvolvimento da industrialização, o forte êxodo rural com a intensificação da vida urbana, os fluxos migratórios europeus para o Brasil, que se acentuam, as implicações do 18 do Forte de Copacabana, da Coluna Prestes e do Tenentismo, a Semana de Arte Moderna produzem disrupturas culturais que se confundem com a gênese da primeira universidade federal do país.

Nesses 100 anos de institucionalização, a UFRJ reflete, desde a sua criação, as disputas presentes no tecido social brasileiro, e seu primeiro aniversário secular representa uma possibilidade de ampliar as vozes que a constroem diretamente nas ações de ensino, pesquisa e extensão, além de possibilitar o resgate de temas e trajetórias internas invisibilizadas. 

O primeiro século da instituição é um convite público para que nossa comunidade acadêmica e o conjunto da sociedade reflitam criticamente: a quem pertence esse espaço e nossas produções científicas? A celebração do centenário pode ser importante para que se analisem nossos mecanismos de constituição e os desafios que temos pela frente − se ampliarmos as vozes e pautas que nesses 100 anos não tiveram espaço para ecoar. 

Aniversariar é acentuar a formulação narrativa e política institucional que assume como missão, para seu segundo século, a responsabilidade de ser uma universidade sem racismo e promotora da igualdade racial. Nesse sentido, é necessário reconhecer que a UFRJ é herdeira de uma dívida histórica para com a população negra deste país, e esse saldo não foi reparado em seus primeiros 100 anos. A celebração institucional hoje deve orientar-se no compromisso com a indução pública de ações antirracistas concretas para o novo ciclo, no qual reconhecimento, justiça e reparação apresentem centralidade.

Duas ações recentes na UFRJ, entre muitas outras, ofereceram-me pistas de como possibilitar que corpos de nossa casa sem tanta notoriedade − e seus temas − assumissem o protagonismo necessário. Quero compartilhá-las neste texto; afinal, celebrar com maior integralidade 100 anos é apresentar feitos e sujeitos que recorrentemente não estão presentes no escopo central das comemorações. 

Em outubro de 2019, a convite da Pró-Reitoria de Extensão (PR-5) da UFRJ, coordenei uma mesa na Semana de Integração Acadêmica da Universidade (clique na imagem ao lado para ampliar). A exposição teve como tema 10 Anos de Invisibilidade da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e contou com painelistas graduandas negras dos cursos de Enfermagem, Medicina, Nutrição e Psicologia. Nesse fórum, a afirmação uníssona, entre o conjunto de coletivos negros discentes que emergem com vitalidade na UFRJ, é a da ausência e negligência com que o eixo de formação para enfrentamento do racismo institucional em saúde ainda hoje segue sendo tratado em nossos cursos. As pessoas presentes apontaram que era urgente a UFRJ ter uma disciplina sobre saúde da população negra, como resposta, entre as muitas necessárias e urgentes, para a promoção da igualdade racial na Academia.

Em dezembro de 2019, no seminário final da disciplina Fundamentos dos Direitos Humanos ministrada por mim, um trabalho chamou-me a atenção ao ter como tema as Cotas Raciais na UFRJ e apresentar uma análise da institucionalização das políticas afirmativas de componente racial na instituição. A discente analisou documentos, boletins institucionais e dados financeiros das ações internas de assistência estudantil para, no fim, apontar que era um exemplo de mudança da composição demográfico-racial que a UFRJ vivencia em seus últimos anos. A discente, de um curso da saúde, apontou, assim como as participantes do evento acima, que era urgente a instituição ter uma disciplina sobre saúde da população negra, como resposta, entre as muitas necessárias e urgentes, para a promoção da igualdade racial na Academia.

A discente chama-se Mayra Brandão, tem 26 anos, é negra, e hoje cursa o 8º período de Terapia Ocupacional. Mayra entrou na UFRJ em 2017 por cotas raciais e de renda e é a primeira pessoa da família a ascender à universidade pública. As falas desses dois eventos orientaram minha escolha por ministrar, no atual período letivo excepcional da UFRJ, a disciplina Saúde da População Negra, Direitos Humanos e Carnaval, que, com lotação máxima, me faz todas as segundas-feiras, pela manhã, poder afirmar que diretamente estamos fornecendo subsídios teóricos para mais de 65 graduandas e graduandos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Saúde Coletiva, Nutrição, Psicologia, Terapia Ocupacional, Educação Física, Fisioterapia, Serviço Social, Geografia e Relações Internacionais incidirem cientificamente na promoção da igualdade racial e dos direitos humanos na saúde e na cultura. 

Sem essas vozes negras da UFRJ, que demandaram tal disciplina, o presente curso não existiria. Saber disso me faz entrar na sala de aula virtual a fim de ministrar cada aula com a certeza de que estamos ofertando um presente para a sociedade brasileira em nossos 100 anos, ao auxiliar na formação de futuras e futuros profissionais. O objetivo é que o tema do racismo não seja mais negligenciado. 

E esse sentimento de reconhecimento aos corpos negros que lutam historicamente para ser parte da UFRJ neste um século me inclinou a dividir parte deste texto com uma agente dos 100 anos. Com a palavra a discente Mayra Brandão:    

 “Quando entramos na universidade pública sentimos a inclusão, mas a permanência não é garantida. Eu andava a pé, pegava carona para economizar dinheiro e, com parte da bolsa-auxílio que recebia na UFRJ, paguei o curso técnico de cabeleireira, pois não tinha garantia de que receberia a bolsa acadêmica por mais de um ano e precisava de uma profissão para me manter na Universidade. Usei parte da bolsa do meu primeiro ano na graduação para financiar meu curso de cabeleireira aos sábados, para poder seguir estudando. Eu fui criando estratégias para me manter na Universidade. Minha outra estratégia foi me lançar na extensão, então consegui uma bolsa como extensionista. Com isso eu consegui diminuir minha carga de trabalho como cabeleireira, o que possibilitou maior dedicação aos estudos acadêmicos e aumentar minhas notas. Depois, consegui uma bolsa de monitoria que também foi fundamental. A universidade tem um papel social e isso me fez pensar, estando na UFRJ, sobre a minha função como futura profissional na saúde. Nesse sentido, uma das questões que mais me incomodava na UFRJ era a ausência de discussões raciais e os impactos do racismo na saúde. As lacunas sociais e raciais históricas ainda presentes da nossa escravidão geram um abismo enorme no acesso à universidade. Quando a minha família me vê na UFRJ, muitas das vezes sem entender tudo que efetivamente eu faço aqui, porque todos tiverem apenas o ensino técnico para ingressarem rápido no mercado de trabalho, eu sei que estou quebrando uma barreira histórica, racial e social não apenas para mim, mas especialmente para minha família e minha comunidade”.

A UFRJ tem muito o que comemorar nesses 100 anos. Especialmente me parece central afirmar narrativas como a de Mayra, que enfrentam diariamente, por meio do suporte de políticas públicas, barreiras estruturais com base no racismo, sexismo e classe presentes na sociedade brasileira e que são refletidas em nossa instituição. Com essa premissa, gera felicitação a sessão do Conselho Universitário (Consuni), órgão máximo da UFRJ, presidida pela reitora Denise Pires, primeira mulher a assumir tal cargo em 100 anos, que aprovou, em 27/8/2020, a concessão dos títulos de professora honoris causa à presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nísia Trindade, e de doutor honoris causa a Noca da Portela (clique no imagem abaixo para ampliar). 

No curso da história narrada pelos vencedores , os grandes feitos e a possibilidade de ascender aos bancos universitários foram outorgados com base na identidade racial e de gênero. Nos seus 100 anos, referendar uma mulher e um homem negro é apontar simbolicamente novos rumos para orientar as ações institucionais frente aos enormes desafios que enfrentaremos neste próximo século, no qual narrativas negacionistas sobre o papel da ciência se acentuam em âmbito global, com forte ênfase no Brasil. 

A capacidade de nossas instituições de ensino superior e institutos de pesquisa responderem às demandas do novo tempo que se inaugura com a pandemia em curso está diretamente relacionada com a capacidade que teremos de ampliar o acesso e a permanência integral, com qualidade, da população negra, periférica e em situação de maior vulnerabilidade ao espaço acadêmico público. A aposta é que a UFRJ esteja preparada para a missão e que em 7 de setembro de 2120 os registros prospectivos possam anotar que nos tornamos uma Universidade na qual a composição racial e de gênero em todos os seus espaços reflita a realidade da sociedade brasileira. 

UFRJ, obrigado. Pisei pela primeira vez aqui em janeiro de 2004 para fazer a matrícula no curso de Psicologia trazido pelo meu avô, um homem negro que estudou formalmente apenas até a 2ª série primária e se emocionou ao adentrar o terreno da Universidade, naquele momento com o neto. Nesta casa fiz mestrado e hoje estou professor. Obrigado por ter ajudado a mudar minha trajetória familiar, de minha comunidade e por seguir me formando prioritariamente um cidadão e homem público, assim como profissional. Parabéns, UFRJ! Nos seus 100 anos, desejo como presente que, num futuro breve, homens negros como meu avô e mulheres negras possam dizer para seus netos que são filhos e filhas da UFRJ.

Sei que os tempos são difíceis e de interdito, mas, conforme nos ensina o carnaval de 1989 da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, mesmo sob ataque, olhai por nós!

* Richarlls Martins é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ, psicólogo formado pela Universidade, mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos também pela UFRJ e doutorando em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na UFRJ, desde 2004, foi extensionista bolsista, supervisor de projetos de extensão, bolsista de iniciação científica, monitor de iniciação docente, representante discente na graduação e diretor da Associação de Pós-Graduandos. Atualmente ministra, na instituição, as disciplinas Saúde da População Negra, Direitos Humanos e Carnaval e Fundamentos dos Direitos Humanos para os cursos de graduação. É supervisor-docente do projeto de extensão Garantia de Direitos Através do Acesso Remoto aos Serviços de Atendimento à População do Complexo da Maré: Plano de Ações para o Enfrentamento da COVID-19 nas Favelas. Compôs o grupo docente elaborador do Plano de Ação Emergencial de Enfrentamento à COVID-19 nas Favelas, que derivou na Lei nº 8.972, de 10/8/2020. 

¹ Este artigo é parte do Especial UFRJ 100 anos, realizado pelo Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) da UFRJ. Servidores docentes e técnico-administrativos, discentes e trabalhadores terceirizados refletem sobre esta Universidade no ano em que ela completa um século de existência. Os textos apresentam as visões, experiências e saberes de quem contribui para que a UFRJ mantenha a sua excelência, produza conhecimento plural, diverso e democrático, apesar de todos os desafios impostos. 

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