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CFCH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas

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Centenário da Universidade do Brasil e a luta por uma Universidade Popular

Especial CFCH - UFRJ 100 anos

Por Lilian Luiz Barbosa e Maria Angélica Paixão Frazão*

A Universidade Federal do Rio de Janeiro comemora este ano o seu centenário com uma história que a coloca na condição de patrimônio dos trabalhadores brasileiros. A UFRJ se constituiu como a primeira Universidade do Brasil, voltada para a formação dos quadros dirigentes da sociedade brasileira e produção de conhecimento deste país. Ao longo desse período, a Universidade passou por diferentes processos sociais permeados de contradições, sem deixar de se caracterizar como uma universidade pública e pautada na indissociabilidade do tripé ensino, pesquisa e extensão.

A trajetória da Universidade confunde-se com a história da própria formação do Brasil contemporâneo. A UFRJ surgiu em 1920 pelo Decreto nº 14.343, como parte de um projeto de modernização conservadora do país. O contexto político e teórico brasileiro nessa época era da criação de teorias que expressavam o racismo científico e o processo de eugenia, o que é fruto de uma estrutura da educação que expressa os elementos mais conservadores da nossa formação social. A implementação do ensino superior no Brasil se deu ainda que tardiamente no século XIX, com a invasão da família real no Rio de Janeiro, tendo como primeira instituição de ensino superior a Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 1808. E, somente um século depois, criou-se a Universidade do Brasil.

Ao longo dos anos, a UFRJ foi palco de grandes lutas sociais, tanto nas tensões e disputas pela sua ampliação, interiorização e popularização quanto nos diversos momentos em que se posicionou na defesa da democracia brasileira. Esses processos de lutas se deram por meio da organização política dos diferentes segmentos que compõem o corpo social da Universidade, com importante destaque da organização e da mobilização estudantil. Nesse sentido, pode-se   destacar o Diretório Central dos Estudantes (DCE) Mário Prata, criado em 1930, representante máximo   das(os) estudantes e  defensor  dos interesses deles nas instâncias deliberativas da Universidade. 

Na ditadura civil e militar, de 1964 a 1985, várias entidades, partidos, organizações, intelectuais de esquerda e estudantes da UFRJ foram perseguidos e mortos. O movimento estudantil foi altamente criminalizado e o DCE, fechado arbitrariamente, funcionando na ilegalidade. O Diretório Central dos Estudantes recebeu o nome de Mário de Souza Prata em homenagem ao estudante que presidiu a entidade em 1971 e, ao lutar contra a ditadura civil-militar, foi assassinado. Embora não tão evidenciado, mas também muito importante para a construção das lutas na instituição, o Movimento de Casas de Estudantes (MCE), atuante na Residência Estudantil, tem um longo período de articulação. O MCE organiza-se de forma regional e nacional com universidades estaduais e federais do país. Os moradores da Residência Estudantil sempre se colocaram como sujeitos políticos, inclusive na construção da Secretaria  Nacional de Casas de Estudantes. O movimento estudantil foi fundamental para a construção das lutas pela redemocratização do país, pela ampliação da educação pública superior e contra a precarização do ensino. 

Foi naquele contexto que, a partir da década de 1970, a grande burguesia internacional, por meio dos seus organismos multilaterais (Banco Mundial, FMI etc.) e em aliança com as burguesias locais latino-americanas, passou a impor uma política de desnacionalização e desindustrialização das economias periféricas, aprofundando a dependência econômico-político-cultural pela reestruturação produtiva, a conhecida ideologia neoliberal e a hegemonia do capital financeiro. Assim, na periferia do capitalismo, ocorreu a revitalização da barbárie, a implementação de instrumentos do racismo estrutural e estruturante, a intensificação da divisão racial e sexual do trabalho, a precarização, a terceirização, a flexibilização trabalhista, o aumento do Estado repressivo, incidindo no alto índice de morte da juventude negra, a militarização de territórios etc.  

As lutas em defesa da educação pública e a mudança no perfil dos estudantes

Estudantes e trabalhadores da UFRJ seguiram lutando em defesa da educação pública e popular. Sabemos que o acesso à educação e às universidades neste país, historicamente, se deu de forma extremamente excludente. Sabemos que as universidades carregam os traços mais conservadores, antidemocráticos, antinacionais, antipopulares, racistas e patriarcais da nossa formação social. Com as mobilizações sociais internas e externas à UFRJ, articuladas e demandadas pelo movimento negro, coletivos estudantis e organizações políticas, frutos também do Estatuto da Igualdade Racial, foi aprovada a Lei nº 12.771, de agosto de 2012, para a implementação de ações afirmativas nas instituições de ensino superior, que teve o ano de 2016 como prazo para adequação de 50% das cotas sociais, raciais e para pessoas com deficiência. 

Dessa forma, a nossa centenária foi posta em xeque! Com a pressão política e diversos debates sobre a implementação das ações afirmativas, ganhou destaque o debate sobre o retrato da Universidade do Brasil. A pergunta que estava na ordem do dia era: onde estava a classe trabalhadora negra na UFRJ? Nesse momento, foi publicado até mesmo um manifesto de diferentes professores e intelectuais com significativo posicionamento contra a implementação da política de ações afirmativas, apontando o possível rebaixamento da qualidade de ensino da instituição, entre outros argumentos racistas. 

A UFRJ foi a última universidade federal a aderir à política de ações afirmativas. Todavia, podemos observar um pouco do resultado dessa conquista com a inserção de estudantes negras(os), periféricas(os) e com identidade de gênero não heteronormativa no ensino superior. Além disso, é visível a riqueza sociocultural que a Universidade ganhou nos últimos anos, expressa tanto na produção, na formulação, como no novo olhar para a produção dos conhecimentos técnico, científico, político e cultural associados às demandas populares.

Além da entrada de um perfil mais popular na Universidade, fez-se e faz-se necessária a luta pela permanência. Pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a UFRJ recebe, hoje, semestralmente, estudantes oriundos das camadas populares das mais diversas regiões, estados e cidades do Brasil. Assim, alunas(os) de baixa renda, com a expansão universitária, entraram na Universidade; porém, infelizmente, as condições necessárias de permanência ainda continuam longe de atender às nossas demandas. Ao falarmos das organizações de estudantes da UFRJ, destacam-se as demandas por assistência estudantil e sua reestruturação: ampliação de vagas na moradia, saúde, lazer, acessibilidade, auxílio, inclusão digital, cultura, ampliação de vagas para a classe trabalhadora na instituição, assim como o próprio acesso universal.   

As lutas dos estudantes pelo acesso e pelas condições de permanência fazem parte da história desta centenária instituição, além de outros desafios que são de todo corpo social tais como a defesa da democracia e da autonomia universitária e o combate contra a precarização da educação, contra a flexibilização das relações de trabalho, o desmonte e o sucateamento do ensino e serviço público. 

Os novos desafios em tempos pandêmicos

Estamos diante de um cenário político, econômico e social que combina a instabilidade de um governo antidemocrático, antinacional e antipopular com a pandemia da COVID-19. Se por um lado o contexto atual agrava as condições de vida do conjunto dos trabalhadores, por outro sabemos que o desmonte da seguridade social, os ataques à educação pública, o aumento do desemprego, a criminalização dos movimentos sociais, o genocídio da juventude negra nas periferias já faziam parte de uma política da classe dominante, intensificada nos últimos anos, especialmente com o golpe iniciado em 2016 e ainda em curso.  

A fascistização do Estado incide nos cortes, nos congelamentos e na falta de investimentos na produção de ciência e tecnologia, setor que seria essencial para a crise sanitária que estamos vivenciando. A exemplo disso, temos os ventiladores pulmonares criados pela UFRJ a baixo custo para pacientes com coronavírus, o qual não interessa ao Estado financiar. Percebemos o avanço do negacionismo da ciência, o irracionalismo, o ataque ao pensamento crítico e ao que é produzido por cientistas e pesquisadores, o que se manifesta nas mais diversas expressões da “questão social”. Estamos diante do aprofundamento dos ataques aos povos originários e quilombolas, patrimônios vivos e históricos deste país.

No que diz respeito à autonomia e democracia das universidades, percebemos também diversas ações que atravessam e dificultam essas demandas, como, por exemplo, a tentativa do governo de implementar um projeto de privatização das universidades públicas, com a perda de sua autonomia pelo projeto Future-se.  Também podemos citar a forma autoritária como têm ocorrido as intervenções indevidas aos institutos federais de educação, para os quais a medida provisória nº 979, de 10/6/2020, foi aprovada para escolhas indiretas de reitores, sem consultar a comunidade acadêmica. Cabe salientar que há anos a educação pública vem sofrendo ataques e congelamento de seu orçamento. Um exemplo disso foi a Emenda Constitucional nº 95/2016, que apelidamos de “PEC do fim do mundo”. A UFRJ tem funcionado com seu orçamento reduzido, impactando diretamente na diminuição de concursos públicos, na produção de pesquisas financiadas e voltadas para o mercado, na realização da educação a distância e no ensino remoto. Tudo isso amplia ainda mais as desigualdades econômicas, sociais e raciais dentro das universidades.

Diante de tudo isso, precisamos mais do que nunca defender a UFRJ como universidade pública que formou e forma milhares de trabalhadores brasileiros, cumprindo papel fundamental na compreensão do Brasil e do mundo. Nestes tempos pandêmicos a UFRJ formou e forma diversos profissionais que estão na linha de frente do combate ao coronavírus, tem contribuído com seu Hospital Universitário no atendimento da população, na produção para as ciências da saúde, das humanidades, das tecnologias aplicadas, sociais, econômicas, políticas, educacionais e tantas outras áreas que contribuem para sociedade. Mas precisamos avançar mais para a construção de uma universidade que realmente queremos.

Que universidade nós queremos?

Queremos uma UFRJ que produza todo o seu conhecimento, a ciência e a tecnologia voltados para as demandas dos trabalhadores. Queremos uma UFRJ que pense acesso e permanência que realmente atendam às necessidades das camadas populares, que expressem a pluralidade sociocultural e racial dos trabalhadores brasileiros. 

Queremos uma UFRJ que reflita os interesses da classe trabalhadora, que tenha exercida a sua função social, que amplie e aprofunde a democracia e as autonomias interna e externa. Queremos uma UFRJ articulada aos movimentos sociais e que potencialize a construção de sujeitos políticos atuantes na sociedade. 

Queremos uma UFRJ que esteja na linha de frente do combate às diversas formas de opressões, tais como o racismo, a Lgbtfobia, o sexismo, e da luta contra a exploração de classe. Queremos uma UFRJ pública, gratuita, de qualidade e popular!

Por isso, compreendemos a importância das lutas realizadas pelos coletivos negros, de mulheres, Lgbtqi+ e estudantes dentro da Universidade... As lutas pela ampliação da assistência estudantil, pelo reconhecimento de estudantes, mães e pais nas políticas de permanência, pela implementação de ações afirmativas em todos os programas de pós-graduação. Compreendemos a organização e a mobilização políticas de estudantes e pesquisadores críticos que produzem conhecimento articulado aos valores emancipatórios dos trabalhadores. 

Assim, nós, mulheres negras pertencentes à classe trabalhadora, formadas por essa instituição e forjadas nas mais diversas lutas e construções políticas, na participação do Movimento de Casas de Estudantes, na Secretaria Nacional de Casas de Estudantes, no Movimento Estudantil de Serviço Social, na construção da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social, no Centro Acadêmico de Serviço Social José Paulo Netto, no Diretório Central dos Estudantes Mário Prata, na Associação de Pós Graduando  da UFRJ (APG), no Coletivo de Negras e Negros de Serviço Social Dona Ivone Lara, saudamos o centenário da Universidade do Brasil e desejamos que se intensifique a luta para transformá-la em uma Universidade Popular.

Pelos que foram, pelos que aqui estão e por aqueles que virão! Lutar, criar, Universidade Popular!

 

* Lilian Luiz Barbosa é mestranda e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS) da UFRJ, especialista em Movimento Social pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH), graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ e integrante do Coletivo de Negras e Negros do Serviço Social da UFRJ Dona Ivone Lara.

Maria Angélica Paixão Frazão é mestranda e pesquisadora (Bolsista Capes) do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS) da UFRJ, graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, extensionista do laboratório Questão Agrária em Debate (QADE) e integrante do Coletivo de Negras e Negros do Serviço Social da UFRJ Dona Ivone Lara.

Este artigo é parte do Especial UFRJ 100 anos, realizado pelo Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) da UFRJ. Servidores docentes e técnico-administrativos, discentes e trabalhadores terceirizados refletem sobre esta Universidade no ano em que ela completa um século de existência. Os textos apresentam as visões, experiências e saberes de quem contribui para que a UFRJ mantenha a sua excelência, produza conhecimento plural, diverso e democrático, apesar de todos os desafios impostos. 

 

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