CFCH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Switch to desktop

>> DESTAQUES

Memórias do Movimento Estudantil no Campus da Praia Vermelha

Especial UFRJ 100 anos¹

Por Ana Maria Ribeiro*

Na comemoração dos 100 anos da UFRJ, é muito importante recuperar sua história, seu percurso, para entender como chegamos a 2020. Com certeza a estrada foi de glórias, mas também com obstáculos e momentos nada gloriosos. A literatura sobre a origem da instituição e de suas unidades fundadoras, até os difíceis anos da década de 1960, é farta, com inúmeras publicações. Destaco a coleção da Editora UFRJ, sobretudo da obra  da professora Maria de Lourdes Fávero, como leitura básica a todos que desejam conhecer nossa universidade. Entretanto, é preciso registrar que pouco temos publicado sobre o período pós-redemocratização do Brasil. 

Nosso objetivo, com este artigo, além de participar da excelente iniciativa do Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) da UFRJ, é o de compartilhar alguns momentos vividos, nos anos 1980, na universidade que se integram à memoria dos 100 anos da UFRJ.

A nova sede do DCE-UFRJ no campus da Praia Vermelha

Ingressei na UFRJ como estudante de graduação do curso de Matemática, em 1980, e comemoro, em 2020, 40 anos na “casa”. É uma vida. Desde jovem, ainda com 17 anos, ingressar na melhor universidade do Brasil, vinda de uma família de imigrantes portugueses que só tinham educação fundamental e sendo a primeira a ingressar numa universidade, foi uma grande vitória. Morava em Jacarepaguá e chegar ao Fundão exigia uma verdadeira saga para ir e voltar. Nos pontos de carona, no Fundão, os motoristas que paravam sequer sabiam como pronunciar o nome do bairro, desconhecido pelos estudantes e docentes – moradores, em sua maioria, da Zona Sul e Tijuca. Uma UFRJ majoritariamente masculina, branca e elitizada. Hoje, fico imensamente feliz em ver a quantidade de jovens, dos mais diferentes bairros e cidades do Rio, com grande diversidade de gênero, raça e condições sociais, demonstrando a clara mudança de perfil de nosso alunado nesta última década. 

O circuito Zona Sul, sair da Zona Norte (Fundão) e rural (Jacarepaguá) começou a fazer parte da minha vida com a entrada no movimento estudantil. Em 1982, fui convidada a ir a uma reunião do conselho de entidades de base (Conselhinho)³ na sede do Diretório Central dos Estudantes (DCE), que até os dias de hoje funciona no mesmo prédio no campus da Praia Vermelha. Entretanto, existe uma história que poucos conhecem sobre aquele prédio. A edificação do DCE/UFRJ tinha a mesma estrutura externa que tem atualmente, mas bem diferente em seu interior. O salão principal era aberto, com o pé direito alto. No fundo, uma escada entre os dois banheiros levava a duas salas no segundo andar, ligadas por um pequeno corredor e com ampla visão do grande salão, como se fosse uma sacada. Ao entrar naquele salão tão grande e ver a sacada, cheguei a perguntar, em reservado, claro, se o presidente do DCE presidiria a reunião lá de cima e ficaríamos embaixo olhando, tal meu desconhecimento do funcionamento do movimento estudantil! Ao lado da sede do DCE, a Fundação Universitária José Bonifácio (Fujb), criada em 1975, ocupava as primeiras portas de uma construção em estilo neoclássico. No espaço restante funcionavam a Atlética da Economia e uma barbearia. Em 1982, a chapa “Nada Será Como Antes” ganha as eleições do DCE e nossa diretoria foi a primeira a abolir o presidencialismo na entidade, instituindo uma direção colegiada, com coordenações, e grande representatividade na UFRJ, no campus do Fundão, unidades isoladas, e especialmente na Praia Vermelha. Entre as lideranças do movimento estudantil da época, estavam os estudantes José Luiz Fevereiro (Economia), Elaine Behring (Serviço Social), Sérgio Leo, Wilson Junior e Cézar Faccioli (ECO), só para citar alguns, que permanecem atuantes nas suas áreas profissionais e no cenário político. O Centro Acadêmico (CA) de Economia informou ao DCE que a Reitoria, na gestão de Adolpho Polillo (reitor nomeado pelo governo militar), determinava que a Atlética deveria sair de suas dependências, pois a área seria usada para expansão das instalações da Fujb. Imediatamente, o CA e o DCE organizaram uma manifestação que consistiu em pintar as salas externa e internamente, já que havia uma legislação que não permitia a demolição de prédios antigos em bom estado. Resistimos, principalmente com a bandeira “contra as fundações” – utilizada como mecanismo de privatização do ensino, uma vez que buscavam recursos externos quando o governo reduzia o orçamento das universidades –, com jornal de denúncia e no uso de nossa intervenção nos colegiados superiores. Entretanto, a barbearia cedeu e ficamos sozinhos no movimento contra a expansão da Fujb! Ao chegar ao fim do semestre, reunimos a diretoria do DCE e avaliamos que nas férias escolares não teríamos alunos no campus para impedir a retirada da Atlética. Dessa forma resolvemos negociar com a Reitoria! 

A negociação para ceder o espaço à Fujb resultou em obras na sede do DCE, com o fechamento do salãoe a construção de um 2º andar e mais duas salas nesse piso; reforma nos banheiros; instalação de linha telefônica na sede; uma máquina de datilografar eletrônica; e uma “queimadora” de estêncil (fotolito da época).  Sim, na época, “aparelhamos” o DCE para as lutas: maior espaço, investimento na comunicação e na imprensa. 

Durante o período de obras, ocupamos o prédio, então abandonado, que ficava atrás da Decania do CFCH, onde atualmente se encontra o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH). Nesse prédio havia funcionado a Faculdade de Farmácia, que tinha sido transferida para o Fundão. As salas abandonadas ainda guardavam os vestígios de que um dia ali havia funcionado laboratórios e salas de aula. Ocupamos um auditório no primeiro andar, depois de uma boa faxina e que, durante o ano de 1983, foi provisoriamente a sede do DCE. Nesse espaço definimos muitas políticas, a mais importante a proposta da primeira greve de estudantes da UFRJ pós-golpe militar. A UFRJ possuía três bandejões espalhados no campus do Fundão (No Centro de Tecnologia, no Centro de Ciências da Saúde e na Reitoria) e um na Praia Vermelha (espaço até hoje ocioso em frente à Escola de Comunicação). Em mais uma campanha contra o aumento do preço das refeições no bandejão (restaurantes universitários) determinado pela Reitoria, a assembleia dos estudantes se posicionou contra o acréscimo, e a diretoria do DCE e os CAs lideraram uma ocupação dos caixas de cobrança. Os servidores saíram dos caixas, as entidades continuaram a cobrança do preço antigo e, ao final do dia, os valores foram depositados no Banco do Brasil, na conta única da UFRJ. O controle de refeições vendidas e o recibo do depósito bancário eram entregues na antiga Sub-Reitoria de Pessoal e Serviços Gerais (SR-4), chefiada por um coronel. A luta foi vitoriosa e naquele ano não houve aumento. Entretanto, passados alguns dias, lideranças foram chamadas pelos seus respectivos diretores de unidade, que informaram sobre a instalação de uma comissão de sindicância. Wilson Rodrigues, estudante de Geografia e coordenador geral do DCE, e Salomão, diretor do CA de Enfermagem, foram convocados para prestar depoimento, já com ameaças de expulsão da Universidade. O fato levou a uma grande mobilização em toda a instituição e o CA de Serviço Social foi o primeiro a deflagrar a greve em apoio aos estudantes ameaçados pela Reitoria. Naquele mesmo dia, vários outros cursos foram se agregando à greve e um grande ato foi convocado para o prédio da Reitoria. No dia do ato, uma assembleia massiva de manhã cedo, nas escadarias do CCS, reuniu os estudantes vindos do Centro, da Praia Vermelha e dos próprios cursos da área de saúde, e foram em passeata, em direção ao prédio da Reitoria –paralisando as aulas do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) e do Centro de Tecnologia (CT). No ato, entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Grupo Tortura Nunca Mais, parlamentares progressistas, associações de docentes e dos servidores e a grande imprensa estavam presentes. O hall da Reitoria ficou completamente tomado de pessoas, até em cima da banca de jornal havia gente. O movimento, que ficou conhecido como a “Greve do Salomão”, foi um marco na lutas dos estudantes da UFRJ, trazendo o protagonismo do DCE/UFRJ nos embates vindouros de defesa da democracia e das liberdades de expressão no interior da universidade.

Infelizmente, não foi apenas esse episódio de perseguição aos estudantes, que lutavam pela democracia, vindo do gabinete da Reitoria. Documentos arquivados na base Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, apresentam vários casos durante o período do regime militar. Em consulta ao meu nome, descobri dezenas de documentos produzidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) e, em um deles, apresenta a cópia de ofício-circular do então reitor informando ao órgão de segurança que, entre os alunos contemplados com apoio da UFRJ para comparecer ao IV Congresso Nacional de Entidades de Base (Coneb)4, da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1982, havia estudantes infiltrados da confiança da administração da universidade. Mas esse tema vai ser objeto de outros artigos, em uma próxima ocasião. Ficamos por aqui, desejando que o tema seja de interesse de nossos estudantes, técnicos-administrativos e docentes para pesquisas mais aprofundadas sobre a UFRJ pós-1980.

*Ana Maria Ribeiro é técnica em assuntos educacionais na UFRJ, desde 1988, lotada na Decania do CFCH. Foi diretora do DCE-UFRJ nas gestões de 1982 a 1985.

¹Este artigo é parte do Especial UFRJ 100 anos, realizado pelo Setor de Comunicação da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (Secom/CFCH) da UFRJ. Servidores docentes e técnico-administrativos, discentes e trabalhadores terceirizados refletem sobre esta Universidade no ano em que ela completa um século de existência. Os textos apresentam as visões, experiências e saberes de quem contribui para que a UFRJ mantenha a sua excelência, produza conhecimento plural, diverso e democrático, apesar de todos os desafios impostos. 

² Universidade do Brasil: das origens à construção; Universidade do Brasil: guia dos dispositivos legais, volume I e II e UNE em tempos de autoritarismo.

³ Reunião dos Centros Acadêmicos (CA’s) e Diretórios Acadêmicos (DA’s) com o Diretório Central dos Estudantes da UFRJ. A nomenclatura DA foi determinada Lei 4464, de 9/11/1964, revogado pela Decreto-Lei 228, 28/02/1967, revogado Lei 6680, 16/08/1979, revogado pela Lei 7395, de 31/11/1985 (vigente). No processo de redemocratização os CAs Livres foram criados identificando que não eram atrelados ao governo.

4 ARJ/ACE 9753/83 – Ofício Confidencial nº 007/83/GR/UFRJ de 23/09/83 – arquivo BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_CCC_83009753_d0001de0001. Disponível em http://www.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em 22.ago.2020.

 

Leia também:

Celebrar a construção de um futuro cada vez mais democrático e emancipador para nossas crianças e jovens, por Cris Miranda

Fazer 100 anos é ter 100 anos de desafios, por Adriana Almeida Campos, Débora Tiago Alvarez, Regina Aparecida Nunes Garcia e Rosa Mônica Ferreira R. Portela

Escola de Educação Infantil: escola-locação de filmes possíveis nos 100 anos da UFRJ, por Daniele Grazinoli e Priscila Basilio

Diálogo aberto com a comunidade acadêmica, por Fabiane Marcondes, Flavia Martinez Ferreira Cherullo e Ludmilla Braga

100 anos da UFRJ, 100 anos de educação, ciência e promoção da cidadania: mesmo sob ataque, olhai por nós, por Richarlls Martins

100 anos da UFRJ, a genuína universidade do Brasil, por Daniel S. Kosinski

Entre flores e pedras, a UFRJ vive, por Juliana Beatriz Almeida de Souza 

Política dos afetos em um professor “tornando-se”: 21 anos de trajetórias compartilhadas, por Pedro Paulo Bicalho 

100 anos da UFRJ - avanços e desafios quanto à democratização, por Fernanda Barros 

Centenário da Universidade do Brasil e a luta por uma Universidade Popular, por Lilian Luiz Barbosa e Maria Angélica Paixão Frazão 

Reconfigurar o presente, piratear futuros – Nós, a UFRJ e o depois, por Céu Cavalcanti 

Evolução e melhorias aos terceirizados nos 100 anos da UFRJ, por Luciana Calixto

100 anos de UFRJ e 90 anos de DCE Mário Prata: nas lutas que a UFRJ se encontra, por Caíque Azael

UFRJ 100 anos: Cem anos sem envelhecer, por Marcio Tavares d´Amaral

100 anos de compromisso social  partir da Ciência, da Arte, da Cultura e da Tecnologia: formando cidadãos insubmissos, por Roberto Leher

Compartilhe este conteúdo